quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Um incentivo para mim e para todos

Albert Schweitzer – o santo de Lambaréné

Introdução
Já li muitas biografias, mas a de Albert Schweitzer que encontrei numa velha enciclopédia (Nosso Universo Maravilhoso, volume 1, págs. 95-103, Editora Brasil-lê S.A.) que meu sogro teve o cuidado de me presentear em vez de lançá-la ao lixo, foi a mais impressionante, não só porquê em muitas detalhes entrevi a mim mesmo tão mal compreendido em minha geração que me chama de “doido” por meu modo prático e incomum de agir, vestir-me e me comportar, dando pouca ou nenhuma atenção aos meus críticos ou contemporâneos comuns, mas principalmente porque Albert Schweitzer é totalmente desconhecido entre aos arraias evangélicos!
Julgo esse retalho de vida, que em poucas palavras iremos falar, é o maior incentivo para essa nova geração tão acomodada e displicente. O relato descritivo é de um provável jornalista que conheceu e entrevistou Schweitzer em uma viajem de trem em 1951, quando ele tinha 76 anos de idade e que conversou particularmente com as pessoas que conheceram esse homem.
No Sudeste do Brasil há um hospital com o nome desse grande vulto da história da Igreja contemporânea.
Resolvi transcrever esse texto quando me preparava psicologicamente para uma nova empreitada: ir ao interior do Estado do Ceará pregar o genuíno evangelho de Jesus Cristo em cima de uma motocicleta sem ao menos ter uma clara chamada missionária da parte de Deus, aliás, sem ao menos saber pilotar motocicleta. Irei pelo amor e pela necessidade. Sou uma pedra transformada em apóstolo da igreja pela falta de obreiros altruístas, que se lança à obra sem dinheiro, apoio e câmeras, e, acresente-se, sem muitas chances de obter bom êxito.

Luiz Sousa

Um ancião encurvado, pobremente vestido, desliza entre as famílias endomingadas que esperam o trem para Estrasburgo na gare da estação de Mulhouse. Detém-se a cada dez passos, para descansar no chão sua pesada bagagem, que, materialmente parece arrancar-lhe os braços; uma enorme mala de madeira negra com os cantos de ferro, pesada como um caixa de ferramentas; um saco viagem, de couro amarrotado e estragado, que deve ter dado dez vezes a volta ao mundo; um saco de lona cheio de latas de conservas, que a cada choque fazia um barulho de lataria.
Debaixo do chapéu preto, a que a chuva dera a forma de gôndola, não se descobre mais que a grenha grisalha das sobrancelhas e do bigode, eriçado como molas de arame. O indivíduo parece ter caminhado horas e horas sob a chuva. O chapéu perdeu a forma e o velho capote de viagem, encharcado como uma esponja, goteja sobre seus sapatos enlameados. O capote abre-se sobre um desses casacos de clérigo, que eram comuns na Alsácia até o ano de 1900. O resto da indumentária era simples: colarinho duro com pontas viradas descobrindo a garganta até muito em baixo; gravata borboleta, de seda preta, armada em papelão, um pouco enviesada, porque o elástico está frouxo, camisa de percal, amarelada à força de se passada a ferro.
Se não fosse pela bagagem, que cheira a aventura, com seus rótulos de navios – e sobretudo o saco de lataria, que demostra uma total indiferença pela opinião pública – esse singular viajante daria impressão de um desses velhos burgueses da Alsácia, que até o fim da vida se vestem aos domingos com o terno de casamento, herdado de seu pai.
Mas para ele sobram os rótulos e o saco de viajem. O homem não é um burguês. É um pobre, um vagabundo, como pode ser observado por sua maneira de atirar o saco sobre um banco e começar uma conversação com seus vizinhos, um soldado licenciado e uma camponesa, como pessoa habituada às amizades em trânsito.
Este pobre, este vagabundo que dentro de um instante vai se aboletar, com toda a sua equipagem, num vagão de terceira, no qual irá em pé até Estrasburgo, é o maior organista da época, o teólogo mais discutido, o crítico e o musicólogo cujos trabalhos restabeleceram o conhecimento de Goethe e de Bach, o médico missionário que se dedicou à lepra e à doença do sono. É o virtuose e conferencista que todas as capitais disputam à força de dólares, o homem cuja vida duzentos milhões de americanos conhecem tão bem como a sua própria, ao qual denominaram o “maior homem vido do mundo” e a que julgam um santo. É o doutor Albert Schweitzer – ilustre no mundo inteiro, quase desconhecido em seu país – o homem que aos setenta e seis anos já viveu todos os sonhos de sua adolescência e que tudo sacrificou – glória, fortuna, tranquilidade, – para converter o último deles em realidade, para o fim de tratar dos leprosos nas selvas do Gabão.

A mais antiga lembrança de Albert Schweitzer e o segredo de sua piedade infantil: o diabo
Em pé, no corredor do trem abarrotado de licenciados do exército, que o conduz a Estrasburgo, onde vai fazer suas provisões de medicamentos para Lambaréné ( as latas vazias que leva no saco de viagem são “depósitos de éter”), Albert Schweitzer falava das ideias do Apóstolo Paulo, de suas investigações históricas sobre a vida de Cristo e da escatologia, ciência da últimas coisas e dos segredos de além-túmulo. Nem os empurrões dos viajantes que sobem em cada estação, nem as pancadas que lhe dão nas pernas com as malas, nem as canções cantadas em côro pelos licenciados, com acompanhamento de acordeão, parecem incomodá-lo. Ali está em seu elemento, como o está em sua povoação ou na selva, ao órgão ou entre seus livros, todo entregue às três paixões de sua vida: Jesus, Goethe e Bach. Somente alguma nota desafinada do acordeonista faz com que Schweitzer arqueie por um instante as sobrancelhas de arame; seus olhinhos vivos, ocultos por aquela brenha de pêlos, se iluminam estala uma gargalhada inesperada. Coisa comum em todo músico refinado, segundo me disse o irmão José Gilardo, meu mentor e amigo.
De Jesus deve-se passar para Bach e de Bach aos velhos órgãos da Alsácia, para provoca-lhe confidências, pensou o entrevistador naquele trem.
– Qual é a minha mais longínqua recordação? Ao ser perguntado, respondeu Schweitzer: “O diabo! Na idade de três ou quatro anos levavam-me aos domingos à igreja, com o que, antecipadamente, alegravam-me durante toda a semana. Ainda sinto nos lábios as luvas de barbante de nossa criada, que me punha a mão na boca quando eu bocejava ou quando cantava alto demais. Todos os domingos aparecia em uma moldura brilhante, no alto, perto do órgão, uma cara barbada que se movia da direita para a esquerda e aprofundava suas miradas na igreja. Visível enquanto soava o órgão e durava o canto, desaparecia logo que meu pai, o pastor, orava no altar, para aparecer de novo quando a música e o cântico recomeçavam; e quando meu pai se punha a pregar tornava a eclipsar-se até que o órgãol voltasse a ser tocado outra vez. “É o diabo olhando à igreja – dizia para comigo mesmo. Quando meu pai fala de Deus ele foge”. Essa teologia, confirmada pela experiência de cada domingo, deu tom à minha piedade infantil. Até muito tempo depois, quando fazia já vários meses que eu freqüentava a igreja de Gunsbach, não compreendia que o rosto hirsuto, de aparições estranhas, era o do Padre Iltis, que eu via refletido no espelho do órgão.
Gunsbach, onde Schweitzer descansa sempre que volta do Gabão, é quase sua aldeia natal. Tinha ele seis meses quando seu pai, o pastor Louis Schweitzer, professor em Kayserberg (onde Albert nasceu no dia 17 de Janeiro de 1875), foi instalar-se em Gunsbach, para atender à Escola e desempenhar a paróquia, disseminada pelo vale de Munster. Todos os Schweitzer foram professores e organistas.
Aos oito anos preocupam-lhe os mistérios da teologia. “A história dos Reis Magos me inquietava. Que teriam feito os pais de Jesus com todo o ouro e as pedras preciosas que aqueles homens lhes haviam levado? – perguntava a mim mesmo – Como foi que continuaram tão pobres? Parecia-me absurdo que os Reis Magos não voltassem a se ocupar do Menino Jesus e que a história não informasse se os pastores de Belém foram depois discípulos de Cristo? Tais perguntas de Schweitzer muito se assemelhavam as minhas quando deseja ir a busca da árvore da vida do Gênesis, ou saber como o homem que preparou o cenáculo para a última ceia foi direcionado por Deus para fazer aquilo; esse modo todo original de ver as coisas mais ainda me fez identificar-me com Schweitzer.
Perguntas iniciais que deram origem a muitas outras e despertaram no rapaz essa insaciável curiosidade de espírito que faria de Albert Schweitzer um dos maiores historiadores da teologia.
“Quanto ao órgão, eu o levava no sangue”. Dizia.
Aos cinco anos Albert improvisava cânticos com acompanhamentos de sua própria autoria. As doze anos substituia no órgão de Gunsbach, durante os ofícios, ao padre Iltis da paróquia. Aos catorze, assombra a seu professor Ernest Munch, organista da Igreja de Saint-Étienne, de Mulhouse, pela inteligência com que intepreta as mais complicadas obras de Beethoven. Aos dezesseis dá em Mulhouse seu primeiro concerto público. Aos dezoito penetra na intimidade de Bach. Esta descoberta deve a Charles-Marie Widor, o grande organista de São Sulpício, em Paris.
“Foi para mim – disse – uma revelação, um deslumbramento. Prometi a mim mesmo consagrar minha vida a difundir o conhecimento daquele músico genial, que ainda era tão desconhecido”.
Não iria faltar à promessa e, no mesmo tempo que prossegue seus estudos de teologia no seminário protestante e os de filosofia na Faculdade de Letras de Estrasburgo, empregará todas as horas livres, suas horas de suelto e suas férias em penetrar o gênio de Bach, rebuscando as bibliotecas de Estrasburgo, Paris e Berlim, para conhecer tudo quanto foi publicado a respeito de seu amado “João Sebastião” e pedindo a todos os órgãos da Alsácia que lhe confiem os segredos do mestre.
Músico? Teólogo? Professor? Qual seria o seu destino?
Numa luminosa manhã de primavera, o Domingo de Pentecostes de 1896, pela primeira vez se fez seriamente essa pergunta. Tinha vinte e um anos. Na véspera saíra de Estrasburgo para ir passar as festas em família, em Gunsbach. Deitara tarde. Parte da noite passou lendo. Quando desperta são cerca de dez horas. O sol o deslumbra. É festa no céu e na terra. Os sinos dançam no ar azul. Todas as macieiras estão em flor. Riem as moçoilas pelas estradas. Ouvem-se ao longe, suaves como um coral de Bach, as vozes entremeadas do órgão e do côro, que a porta da velha igreja, abrindo-se e fechando-se, envia em rajadas alternadas.

O pacto do Pentecostes
Albert Schweitzer voltou a fechar os olhos. Depois de trabalhar como um forçado todos aqueles meses, durante os quais não dormiu mais de quatro ou cinco horas por noite, goza a possibilidade de espairecer na cama até alta manhã, num estado de semi-sonolência. Naquele momento preciso surge a insidiosa pergunta, que ele repele despreocupadamente. Escolher? Por que escolher se pode fazer tudo? Nunca havia experimentado tal sensação de vigor. Pela primeira vez experimenta a revelação dos dons excepcionais de que a Providência o cumulou. E também, pela primeira vez, mede todo o peso da palavra dom, que com tanta freqüência tem ouvido pronunciar ao seu redor.
Aquele sentido inato da música, aquele gosto apaixonado pelo estudo, aquela quase ilimitada capacidade de trabalho e aquela saúde de ferro, que lhe permitem passar NOITES INTEIRAS SENTADO à sua mesa de trabalho... todas essas coisas lhe foram dadas. Experimenta uma espécie de embriaguez, não de orgulho, mas de gratidão. Que deve fazer com todas essas coisas que lhe deram e que ele desenvolve? Explode então o grito triunfal do homem de vinte anos ao sentir-se dono do mundo. Músico, professor, teólogo...Tudo isso será! Lançar-se-á a todas essas carreiras! Realizará todas suas ambições! Viverá todos os seus sonhos!
Por que em meio à sua embriaguez pensa subitamente em Mousche, o velho judeu de sua infância, que atravessava a aldeia “com a cabeça baixa como seu burro”, perseguido pela chacota da molecada? Por que pensa em todos os seus camaradas da localidade, que por falta de dinheiro não puderam continuar seus estudos? Por que em todos os pobres, os enfermos, os deserdados, privados desses preciosos dons que a ele tornam tão fáceis todos os êxitos, e que vivem no desamparo, na dor e na ignorância? Menino cumulado de tudo, sempre lhe doeram, no mais íntimo de seu ser, essas desgraças que pesam sobre todo o mundo. Todas as suas inquietações despertam-se de repente. E se lhe ocorre a terrível pergunta: – Tem direito de aceitar, como naturais, os excepcionais favores que lhe foram concedidos??
“Não tens o direito de guardar tua vida para ti!” Essa frase de Jesus o comove:
“Aquele a quem a vida cumulou de benefícios, está obrigado a reparti-los em legal quantidade. Aquele que se vê livre de sofrimentos deverá contribuir para o alívio dos outros. Todos, absolutamente todos, temos que carregar parte da carga da dor que pesa sobre a humanidade”.
Naquele instante, enquanto soam os sinos de Pentecostes, só, em seu quarto de Gunsbach, o estudante Schweitzer firmava consigo mesmo, perante Deus, o pacto que o prenderá por toda a vida a uma existência de sacrifício. Durante nove anos vai consagrar-se às suas três paixões: música, teologia e filosofia. Porém nos trinta aos de idade – dia a dia – irá renunciando a todas as suas ambições pessoais e por-se-á “ao serviço direto da humanidade”. E faz ainda outro juramento: “o de jamais ceder à trágica necessidade de ser um homem razoável”. Ambos os compromissos manteve integralmente.
Regressa a Estrasburgo. Volta a encontrar-se em sua pequena acomodação do Seminário. Uma cama de campanha, uma cadeira e uma estante para livros. Sua mesa está diante da janela, de onde se avistam, através das árvores do parque, os telhados pontiagudos da cidade. Preso por alfinetes à parede há um salmo: “coloca mais alto, cada vez mais alto, teu sonho ou teu desejo; o ideal a que queres servir, sempre mais algo”. Eis aí a divisa desse aventureiro do espírito, como a si mesmo se definia.
Dessa “cela” não sai senão para ir a Paris a fim de seguir os cursos da Sorbonne, estuda Bach com Widor, documentar-se em Berlim ou visitar os velhos órgãos da Alsácia.

Em nove anos vive toda uma vida
Durante nove anos de graça que a si mesmo concedeu, entrega-se à sua paixão pelo estudo com uma espécie de frenesi. Às vezes PERMANECIA ATÉ VINTE HORAS JUNTO DE SUA MESA, esquecendo-se do jantar e da ceia. Um pedaço de pão, um copo d’água, três ou quatro horas de sono lhe bastavam. Vive “em Jesus, em Goethe, em Bach”. Unicamente quando interrompe seu trabalho para fazer um exame, dar um concerto ou publicar uma obra, pode-se medir o trabalho que levou a cabo, silenciosamente, em seu retiro.
Quando aos vinte anos vai a Paris para sustenta sua tese sobre “a filosofia de Kant”, dá-se conta de que TEVE QUE SE ENTREGAR A TRABALHOS DE ERUDIÇÃO CAPAZES DE ABSORVER TODA UMA VIDA, para demonstrar, seguindo as particularidades da linguagem de Kant, as variações de seu pensamento religioso.
Descobre então Widor, estupefado, que Schweitzer não é somente um executante de primeira ordem, mas também o único homem do mundo que penetrou até o fundo do gênio religioso de Bach. E o célebre organista fica confuso quando o estudante dá-lhe a conhecer seus trabalhos sobre os “processos comparados de fabricação, dos construtores de órgãos franceses e alemães”.
Quando em 1905 aparece sua obra: “Bach, o músico-poeta”, adquire admiradores e amizades apaixonadas. Vê-se solicitado por todos os organizadores de concertos. Carmem Silva, a rainha da Rumânia, roga-lhe que vá passar suas férias em seu castelo de Sinaia; porém, quem fala de férias? O período de graça está expirado. Uma vertigem se apodera do velho estudante. Já?! Os nove anos passaram como um sonho. Tem a sensação de nada haver feito.
Que fez? Doutor em teologia, doutor em filosofia, reverendo da Igreja de São Nicolau, professor, além de conferencista, na Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, diretor do Seminário em que se educou, realizou uma obra gigantesca. Seus estudos sobre Bach renovaram o conhecimento do maior músico de todos os tempos. Suas obras sobre as “ideias messiânicas de Jesus” sobre o problema da “Sagrada Ceia” e sobre “a historiografia da vida de Cristo”, trouxeram à baila a questão da ciência chamada escatologia, o que dará lugar a uma das maiores controvérsias teológicas do século.
Músico de grande talento, teólogo, professor, realizou todas as ambições de sua adolescência. Viveu todos os seus sonhos. Chegou, pois, o momento de “pagar”. “Tudo obtiveste; hás de dar tudo”. Não é Mefistófeles (espírito intelectual das lendas germânicas e personagem do Fausto, drama de Goethe), é Deus quem recorda ao homem sua promessa.

É preciso tudo deixar para seguir Jesus
Terrível instante. O homem de debate. Minha obra não está terminada. Widor conta comigo para publicar os corais de Bach. Os alunos esperam a continuação do meu curso. Meus fiéis me reclamam. Todas as suas fibras prendem o homem às suas cátedras de professor e de ministro do Senhor.
É preciso tudo deixar para seguir-me! Albert Schweitzer está só em seu escritório do Seminário, a cabeça entre as mãos, presa da crise mais violenta que jamais atravessou. Seu olhar pousa sobre um folheto colocado em cima de sua pasta de mata-borrão. É um opúsculo das missões evangélicas. Afasta-se com a mão. “Bach” Jesus! Como viver sem eles?” Volta a pegar o opúsculo. Folhei-o distraidamente.
O que nele se passa nesse instante em que se joga sua vida conta-nos ele mesmo com nua sobriedade que produz calafrios:
“Meus olhos foram dar com um artigo intitulado ‘A missão do Gabão’. Seu autor, o alsaciano Alfredo Boegner, lamentava-se de que a missão precisava de homens que continuassem sua obra, no Gabão. Alimentava a esperança de que seu apelo comovesse ‘aqueles sobre quem descansava, já, o olhar de Deus e os decidiria a oferecer-se para aquela tarefa urgente’. O artigo terminava com estas palavras: ‘homens, que à chegada do divino Mestre respondam simplesmente: ‘Senhor, ponho-me a caminho’ ”.
Albert Schweitzer fecha o folheto. Sua decisão está tomada. Por-se-á “ao serviço direto da humanidade”. Em pleno triunfo, tudo abandonará para ir cuidar de leprosos, na longínqua África.

Helena
Apenas a uma pessoa comunicou sua resolução: Helena Bresslau, sua discípula. Esta tem vinte anos. Ele trinta. Uma paixão comum de servir os prende. Ele aprova seu projeto, quase insensato, de começar, naquela idade, estudos de medicina, e por sua vez decide fazer cursos de enfermagem, para acompanhá-lo.
Quando o célebre professor de teologia Albert Schweitzer vai fazer suas matrículas como estudante na Faculdade de Medicina, o decano, seu amigo, acredita que ele enlouqueceu de repente. Essa é também a opinião de músicos e filósofos, que em vão tentaram trazer Schweitzer “a razão”. Ele tinha feito o juramento de “nunca ser um homem razoável”. E cumpre sua palavra.
Oito anos depois, terminados seus estudos de medicina, na sexta-feira santa de 1913, embarca com Helena, sua jovem esposa, para a grande aventura na selva virgem do Gabão.
Debruçados na amurada do navio Europe, que acaba de zarpar de Bordéus, Albert e Helena Schweitzer contemplam as costas da França, que vão perdendo nas brumas do oceano.
Depois do triunfo da partida – esta partida tão esperada que preparavam desde muitos meses, – uma súbita angústia os oprimiu. O que vão encontrar naquele país, do qual apenas sabem que é o mais abandonado e o mais miserável da Terra?? O Gabão é nessa época considerado como “a cloaca do mundo”, com seus pântanos infestados de mosquitos e a tórrida emanação de sua selva apodrecendo-se nas águas paradas, onde moram todos os pesadelos da humanidade: feras, antropófagos, répteis monstruosos, e esses flagelos ainda mais terríveis: a fome, a doença do sono e a lepra.
Schweitzer está só com sua mulher.
O diretor das Missões Evangélicas de Paris não pode subvencioná-lo nem incorporá-lo ao pessoal das Missões. Apenas pôs a sua disposição parte dos terrenos e um dos edifícios de sua concessão de Lambaréné, no vale do Ogüe. Schweitzer terá de criar, com seus próprios meios, o hospital que decidiu fundar no Gabão.
No momento esse hospital está integrado pelos setentas caixotes de medicamentos e de víveres que ele mesmo encaixotou com suas próprias mãos e que os guindastes do cais acabam de fazer baixar aos porões do barco.
Schweitzer calcula que poderá “resistir” um ano. É preciso, pois, que em um ano – dia a dia – tenha ganho a partida. Só, em sua cabine, ou passando a grandes passadas pelo convés, entre os emigrantes, Schweitzer, “cronometra” dia e noite esse match contra o desconhecido.
O Europe, que tomou carvão em Dakar, Grand-Bassam e Cotonou, atraca, a 14 de Abril de 1913, em Cabo Lopes, quase na linha do equador. Ali embarcam os Schweitzer a bordo do Alembé, um vaporzinho de rodas, que sobe lentamente o Ogüe em demanda de Lambaréné.

Primeiro contato com os “sonolentos”
O Ogüe tem 1200 quilômetros. É um desses imensos rios da África Equatorial, cujas águas lodosas perdem-se de vista nas selvas, entre ilhas e bancos de areia, de repente se estreitam bruscamente entre a dupla parede abrupta da floresta virgem, e se afundam interminavelmente sob um túnel de galhos e de lianas emaranhadas na glauca penumbra da selva tropical. Quanto mais se avança, mais pesado se faz o calor, o ar sufocante, a luz difusa. Quando cessa o barulho da máquina, um angustiante silêncio oprime o viajante.
Parece que nesse mundo alucinante, onde não se distingue o rio de sua margem, nada humano existe. Ao longe se percebem, entretanto, em uma aberta da muralha vegetal, alguns indígenas completamente nus ou cingidos por uma tapagem de folhas, em pé, perto de suas canoas e que olham o barco com um ar de animais acossados. Sentado junto do piloto, Albert Schweitzer examina de longe seus primeiros clientes. Quase todos são de uma magreza impressionante. Por certas tumescências reconhece os “sonolentos” e por certas chagas, aos leprosos.
Ao cabo de dois dias e duas noites de navegação nessa paisagem de pesadelo, o Alambé aporta a Lambaréné. Os três missionários, um homem e duas mulheres, acompanhados de uma multidão de garotos indígenas chegam em pirogas (canoas) ao encontro dos Schweitzer e os conduzem à sua cabana na colina que domina o rio.
Uma mesa velha e uma cama de campanha; nem um mosqueteiro, ao menos. A primeira coisa que a jovem senhora Schweitzer vê ao entrar é uma gigantesca aranha, tão grande quanto um prato, que agita seus palpos cabeludos.

Seu hospital é um galinheiro
Após uma noite de insônia, durante a qual travaram relações com os mosquitos e as formigas vermelhas, os Schweitzer deitam mãos à obra. Ainda não haviam desfeito suas malas quando uma multidão de indígenas aparecem diante de sua cabana. São os enfermos, que advertidos pelo tantã, vieram da mata e imploram a assistência do “Grande Doutor Branco”, estendendo-lhes suas pústulas e seus cotos.
Schweitezer pede que lhe indiquem as barracas que a Missão pôs à sua disposição. Trata-se de um velho galinheiro abandonado que está materialmente em ruína. Quanto ao “outro edifício” – o que lhe estava destinado – nem ao menos tinha sido iniciada sua construção.
– Comecemos pelo galinheiro! Disse Schweitzer.
Uma vez por ele mesmo limpo e desinfetado, dá ali suas primeiras consultas. Esse galinheiro, cujo telhado faz reconstruir será durante muitas semanas todo o seu hospital: sala de exames, sala de operações, dispensário, farmácia. Opera sobre um banco de carpinteiro. Sua esposa lhe serve de ajudante. Ela cuida das anestesias. Aquele poder de “matar os doentes e ressuscitar os mortos”, logo lhe dá uma reputação superior à do feiticeiro. Mas a ex-estudante de teologia realiza outros muitos “milagres”. Ela arruma a casa, faz a comida, lava, ocupa-se dos medicamentos e das ataduras e frequentemente, depois de dezesseis horas de trabalho e com um calor de estufa, passa a noite velando um operado, albergado num refúgio fortuito. Fico a imaginar agora essas mães cheias de si como se tudo tivessem feito quando “velavam” seus bebezinhos saudáveis nas “longas” horas noite à dentro, e que a qualquer pequena desobediência do filho já lança em rosto toda essa “tortura” pelo que passou.
Entre suas consultas e suas operações, Albert Schweitzer, por sua parte, faz-se de lenhador e de carpinteiro. A tarefa mais urgente é a de construir pavilhões para alojar todos os infelizes que afluem da mata e que, faltos de abrigo, dormem ao ar livre e tiritam de febre durante a noite, sob as ventanias e as chuvas. Recruta os homens válidos da localidade e os ensina a derrubar árvores na floresta, árvores que logo se converterão em postes, e nos pântanos, a dois dias de Lambaréné, a cortar tábua para fazer tetos. Ensina aos indígenas a arte de cortar os pedaços de madeira e de encaixá-los. Da madrugada ao anoitecer maneja o machado, o martelo, o cinzel. Suas delicadas mãos, que tão doces sonoridades arrancavam ao órgão, tornam-se calosas sob o cabo das ferramentas. O suor cola sua camisa as sua costas. Não abandona a oficina senão para ir ao “galinheiro”, onde tem que operar urgentemente um indígena atingido pela queda de uma árvore ou a quem um leopardo cortou o braço. Fico agora a imaginar esses residentes de medicina com seus jalecos brancos fazendo careta por causa de alguma tragédia particular como ter de espantar uma mosca desatenta que entrou no hospital. Ou esses médicos se achando os melhores seres do mundo porque tiveram um plantão um pouquinho mais difícil ou porque não podem comprar um carro mais potente do ano vigente, mas apenas esse semi de luxo que qualquer empresário bruto do ramo da construção ou algum comerciante de bairro periférico pode adquirir.
O tantã fez chegar até às profundezas inexploradas da selva os milagres realizados pelo Grande Doutor Branco, e em pirogas abarrotadas afluem a Lambaréné todas as misérias da floresta tropical.
Schweitzer vê-se abarbado. O impaludismo, a disenteria, a doença do sono, a lepra, fazem-se endêmicos naquele clima tórrido, onde a menor ferida se inflama. É preciso cortar, cauterizar, desinfetar.
Os leprosos aterrorizam, com suas faces carcomidas, seus rostos sem nariz, suas bocas sem lábios, suas mãos sem dedos e seus olhos entumescidos de pus. Essas úlceras desprendem um tão mau cheiro, no calor tropical, que Schweitzer tem, às vezes, que aspirar certos sais para não desmaiar.
Os “sonolentos”, inchados como odres ou de uma magreza esquelética, caídos ao solo, onde esperam que a morte os libere de seus males, não são menos impressionantes.
Mas, os mais horríveis são os loucos, convertidos em algo semelhante a feras e que guincham e saltam como gorilas cada vez que se aproxima uma tempestade, que os enfurece. É preciso agarrá-los, amarrá-los, isolá-los para que não ataquem uns aos outros a dentadas e unhadas. E são numerosos os que nas trevas da floresta os feiticeiros e os tabus da magia negra fizeram perder a razão. Antes da chegada dos missionários, os indígenas se desembaraçavam dos mais perigosos atando-lhes as mãos e atirando-os ao rio.
Albert Schweitzer os trata. Com o auxílio de um indígena chamado José, antigo cozinheiro de um colono, de que fez seu enfermeiro e intérprete, esforça-se em libertar aqueles infelizes de seus terrores ancestrais. Psiquiatra e pastor, exorciza aqueles “possessos”, presas de todos os demônios da selva.
O artista, o teólogo, o filósofo dotado de todos os dons da natureza, paga, sem regatear, seu tributo à providência divina. Não há trabalho que o detenha, não há chaga, do corpo e da alma, por mais espantosa que seja, que o faça retroceder. Realiza humildemente seu apostolado. Conseguiu seu propósito: tocar o fundo da miséria humana. E quando mais n ela se aprofunda, mais descobre que supera em horror a tudo quanto a propósito havia imaginado.
Por que milagre consegue, em alguns meses, construir um acampamento-hospital, abrigos para enfermos e suas famílias e a dar assistência a centenas de leprosos, de “sonolentos” e de demônios julgados incuráveis é a grande incógnita superior a qualquer outra dos difíceis exames de matemática das infrutíferas olimpíadas de nossos dias.

Continua...